terça-feira, 1 de junho de 2010

" história mítica antiga do Soyo e do Kongo ! e o tráfico de Escravos bacia do Congo."



O Mito Solongo de Diogo Cão e o seu contexto

Debatem-se ainda hoje várias opiniões (às vezes opções...) sobre as origens remotas e a "fundação" do Reino do Kongo, sem se fazer sequer muita atenção à extensão ou validade dos conceitos "fundação" e "Reino" e introduzindo no respectivo estudo terminologias discutíveis que, infelizmente, vamos uma vez mais ser obrigados a utilizar por falta de melhor solução.
Entretanto, e independentemente dessa indecisão terminológica, não parece ainda possível descrever o processo de formação destes Estados da África Central com um mínimo de precisão.
Correm vários mitos que a ele se referem, e sobre esses mitos chocam-se várias leituras. O panorama dos resultados é vasto, é rico, e é vago.
A documentação que nos chega não se refere a estas épocas senão como reflexo duma tradição oral muito posterior e tem-se visto mais do que uma vez, os velhos e outros informantes de trabalhos de campo recitarem o que vem escrito nos livros que estiveram ao seu alcance.
Por vezes os relatores dessa documentação não tinham discernimento suficiente para entrar em subtilezas semânticas dos conceitos que usavam e que eram os que definiam a sua própria sociedade, como os conceitos de "pai", "tio", "sobrinho", "filho", etc.
O termo "Mani" muito usado nessa documentação para distinguir os mais altos aristocratas, tais como o "Mani Sonho", o "Mani Kongo", o "Mani Bata", etc. que se saiba, nunca foi confirmado no terreno por pesquisadores mais modernos e logo mais completos
Tudo parece indicar que se trate de uma corruptela de "mwana" significando, "filho" no sentido hierárquico e não genealógico.
Para António Gonçalves, o acto de conceder uma terra ou um território a um visitante ou a qualquer pessoa, é um acto de paternidade.
O "Mani Soyo" da época de Diogo Cão falava do rei do Kongo como "seu sobrinho", não porque fosse necessariamente seu "tio" mas sim porque eram ambos do mesmo clã e ele, o do Soyo, era o mais-velho do clã, o Nkunkulu, título que sempre preferiram e respeitaram os chefes solongo originários de Mbanza Kongo.
Mas apesar destas dificuldades vale a pena passar uma rápida vista de olhos pela mitologia destes povos quanto mais não seja para ganhar outra e tremenda dúvida:

Quem eram afinal os basolongo?

Os basolongo são eminentemente patrilineares.
Os muxikongo (de Mbanza Kongo) e todos os outros bakongo que se conhecem, identificam-se pela filiação matrilinear. Donde vem essa diferença tão significativa? Corresponde às diferenças entre dois povos de origens diversas que se encontraram e aliaram de várias maneiras, ou à diferenciação operada durante um processo comum?
Os basolongo falam um dialecto, o kisolongo, bem distinto do kikongo clássico de Mbanza Kongo. Porquê?
Isso é mais uma vez o resultado do encontro de dois povos diferentes que se aproximaram ou de um só povo que se diferencia em partes?

O Mito de Lukeni

Há portanto mais do que um mito referindo-se ao processo de formação do Estado do Kongo, dito geralmente Reino do Kongo.
Todos eles têm a mesma linha narrativa, isto é, falam da primeira migração de um grupo de linhagens associadas, simbolizadas pelo nome de um herói mítico, um "herói fundador" como Ntinu Wene, como Nimi a Lukeni, falam também de um contexto centro-africano onde se insere o itinerário percorrido, este último fixando um território que virá a consagrar fronteiras míticas do referido Estado.
Para o efeito que se pretende neste breve estudo, todos esses complicados enredos não são muito relevantes.
Mas não poderíamos compreender o "mito de Diogo Cão", o navegador português que atingiu as praias do Soyo pela primeira vez, sem compreender também o que eram e como se desenvolviam os basolongo, isto é os habitantes do Soyo, assim como, qual o ponto da situação, na altura, em relação ao Estado do Kongo.
Tomamos aqui uma síntese das versões conhecidas do mito talvez mais representativo referido à formação do Estado do Kongo, o mito de Nimi a Lukeni.
Segundo a documentação dos séculos XV e XVI, e segundo a interpretação mais corrente, a "fundação" do reino do Kongo parte de uma formação Yombe vinda de Vungu, na margem direita do Zaire, provavelmente no Mayombe, que teria emigrado no Século XIV que se encaminhou para a margem esquerda do rio onde acabou por fundar Mbanza Kongo.
Diz-nos esta tradição que vivia no ponto de partida um chefe chamado Nimi a Nzinga. Nzinga é um nome atribuído a um grupo de linhagens aliadas que se pretendiam descendentes do mesmo antepassado.
Um determinado ramo do grupo Nimi a Nzinga, chamado Nimi a Lukeni, é o que está na origem da fundação da capital do Kongo, na margem Sul.
Neste conjunto, Nimi a Nzinga, nome dominante, é o de uma aliança patrilinear. Lukeni é um nome da linha matrilinear. Assim, Nimi a Lukeni é "filho" de Nimi a Nzinga e de uma certa Nzanza que pertence a outro subgrupo chamado Nsaku Lau.
O herói "Lukeni" partiu, pois da aldeia do seu "pai" e, em Mpemba, a região de Mbanza Kongo, derrotou o chefe local Mbunlulu Mwana Mpangala.
A história posterior revela uma aliança importante do poder com uma série de senhores que a documentação mais antiga designa por "Mani Pangala" que representa as linhagens locais com importância determinante nos assuntos religiosos e na gestão da "propriedade linhageira".
Uma outra lenda sobre a "fundação" do reino do Kongo que não vamos tratar nestas páginas, relatada por A.Cordeiro em 1624, diz que Mbanza Kongo foi fundada por Ntinu Wene (ou Motino- Bene), "um filho mais novo do Rei de Vungu" o qual teria conquistado e unificado as numerosas chefaturas em que estava dividida a formação local Kongo.
A narração deste mito está ornada com os parâmetros habituais da linguagem mítica. Nela se destaca um personagem que vem de longe com uma intenção reformadora (ou conquistadora) e com uma comitiva ou "a sua gente", um itinerário muito bem definido, o encontro com mandatários locais, e a instituição de uma aliança que assume formas diversas, desde o casamento com uma mulher aborígene a uma guerra seguida de vitória total mas sempre generosa.
Seja como for todas as lendas estão de acordo com um ponto de origem em Vungu, donde rompeu uma migração cujo nome designa não a pessoa nem sequer o conteúdo étnico do grupo mas apenas a linhagem dominante, que chegou a Mpemba, onde fundou a cidade de Mbanza Kongo.
Importa referir que o missionário A. Cordeiro, Duarte Lopes/Pigafetta e todos os cronistas que se referiram à expedição de Diogo Cão, fixaram para a posteridade o nome de Nzinga a Nkuwo, como sendo o rei do Kongo que os portugueses encontraram e que veio a chamar-se D. João I.
Nzinga e Nkuwo são, uma vez mais, nomes clâmicos que se repercutem por toda a história do Kongo e, principalmente o primeiro, é uma chave para a história do Soyo e dos seus conflitos internos.
Diz também a tradição Kongo que este rei teve um filho (entre outros) chamado Mvemba a Nzinga (D. Afonso I) e Cordeiro acrescenta que a (linhagem central) Mvemba Nzinga deu "os grandes reis até Henrique I" e ocupou os territórios de Mpemba e Soyo, o que significaria que se estendeu nesse território pelo menos desde Lukeni até ao "príncipe Nezinga" que incluiu o Soyo no território do reino.
Com efeito, a partir de Mbanza Kongo teve lugar um processo de expansão por todo o território que acabou também por chegar ao Soyo e assim, é o sangue Mvemba a Nzinga que entra no Soyo através de um outro personagem ou herói que pertence já à mitologia local e que se chama Nzinga a Mvemba (designado na tradição Soyo como "o príncipe Nezinga").onde encontra os basolongo e organiza um estado sujeito à coroa central.
Nas linhas que se seguem vamos ter ocasião de ver como as linhagens reais em Mbanza Kongo tendo vindo de fora, ficam ligadas ao poder local Mpemba Nkazi assim como no Soyo a linhagem estrangeira (Mvemba Nzinga, vinda de Mbanza Kongo) sediada no Pinda, se liga ao chefes da terra (do Pângala).

Os Mitos de Fundação no Soyo

Todos os velhos do Soyo, tanto os das linhagens "da terra" como os das linhagens "de fora" (de Mbanza Kongo) estão de acordo que Nezinga, o "príncipe Nezinga", é o verdadeiro fundador do Estado do Soyo embora absorvido pela soberania Kongo.
Mas, em 1980, os velhos ligados ao poder de então que estava nas mãos das linhagens "da terra" - em que um regente (na falta de um rei coroado) utilizava o título de Soyo dya Nsi- afirmavam que a gente que Nezinga encontrou no Soyo, era um povo organizado e evoluído, produto duma migração muito mais antiga dirigida pelo herói Nentombe. A origem de Nentombe não porém muito clara.
A sua função ideológica sim: a de criar uma formação dona da terra antes de Nezinga. Algumas das versões recolhidas dizem: " Nentombe foi colocado por Deus aqui na terra do Soyo...".
Outros porém afirmavam que "Nentombe é originário de Mbanza Kongo.
Os espíritos arrastaram-no para o Soyo... ".
Em todo o caso o herói permanece um personagem misterioso que simboliza uma migração muito remota, cujo itinerário, passando pelo Ambriz no Sul até Noki na margem do Zaire, estabelece um território que se pode considerar mesmo ainda hoje, o território solongo.
Além disso, de certo modo o mito é confirmado pela tradição Nezinga onde se diz que este príncipe encontrou no Soyo uma sociedade rica, evoluída mas fragmentada, vagamente dirigida por um chefe designado Soyo dya Nsi, sediado no Pângala.
De tudo isto ressalta com bastante evidência um conflito de poder -- e de posse de terras -- no Soyo, entre os descendentes de Nentombe e os descendentes de Nezinga, que vem até hoje.
A lenda de Nezinga tem também um itinerário significante, como todas as outras, que sai de Mbanza Kongo, vai ao Nzetu (zona do Ambriz) desce para a foz do Zaire e chega ao Pângala onde está o Soyo dya Nsi , estabelece uma aliança em que fica claro que Nezinga segura o poder mas o Chefe local continua o dono da terra.
Depois prossegue na sua viagem através da qual foi espalhando o sangue Mvemba a Nzinga com casamentos dos quais resultam mais de trinta filhos.
Um dos mitemas principais da tradição Nezinga é o conflito surgido entre os seus próprios filhos e dos filhos com o pai, por ocasião de uma doença deste, por via das misturas de sangue de que eram portadores e dos diferentes compromissos que elas implicavam.
Num outro mitema diz-se que Nezinga, depois de firmado o acordo com Soyo dya Nsi, voltou a Mbanza Kongo exibindo esse excelente trunfo assim como duas cabaças, uma com água do mar (a riqueza) e outra com areia do solo ( a numerosa população local), faz-se perdoar e é acreditado pelo rei como governador das terras donde viera.
Algumas versões recolhidas informam que Nezinga recebe autoridade sobre o Soyo por parte do rei do Kongo seu tio, para resolver "os casos simples" deixando para ele, Ntotila, "os casos complicados".
Este mitema vem a repercutir-se, como veremos, no mito de Diogo Cão.
Finalmente, e para não alongarmos muito este texto fora do assunto principal, resta acrescentar que, depois do conflito de Nezinga com os seus filhos, estes foram deserdados excepto as duas filhas, Ndilu e Mfutila que se haviam mostrado obedientes por amor filial.
O mito prossegue, depois da morte de Nzinga através dos seus sucessores.
O herdeiro do trono solongo foi o filho de Ndilu, a filha mais velha, que se chamou Mvemba a Ndilu.
Mas quando cresceu o filha de Mfutila, a mais nova, a mãe exigiu uma parte da herança segundo as orientações do falecido pai.
Gerou-se um conflito que resultou na partilha do Soyo em dois Estados: o Soyo de Cima (Mfutila Nentandu) e o Soyo de Baixo (Mfutila Neanda) situado na margem do Zaire, aliás o centro do conjunto político.
Enfim, este mitema da partilha do Soyo explica o estado actual da sociedade e do poder solongo que de facto apresentam uma divisão em duas partes, hoje bastante diluída.
O panorama político-social do Soyo à chegada da expedição de Diogo Cão, é pois o de um Estado solongo, dividido em dois, o Soyo-de-Cima ao Sul e o Soyo-de-Baixo, ao Norte. o todo é contudo uma dependência do trono Kongo em Mbanza Kongo, onde reina provavelmente a linhagem Mvemba Nzinga.
A comunidade solongo, além de dividida por dois Estados entre os quais o Soyo-de-Baixo, sediado no Pinda (mais exactamente no Kitxitxi, segundo a tradição Nezinga) detém o poder central de etnia, contem igualmente um certa diferenciação classista onde se destaca uma camada social aristocrática, ela própria dividida também em duas camadas aliadas mas contraditórias vindas de fontes diferentes:
a dos chefes das linhagens locais e a dos chefes das linhagens Mvemba Nzinga originárias de Mbanza Kongo.
Resta acrescentar que, tendo sido possível em 1990, recolher várias listas genealógicas do trono solongo "desde a sua fundação" mais ou menos desiguais mas semelhantes pareceu-nos interessante apresentar aqui aquela que se revela mais sólida, embora apenas até à época do navegador português:

Mvemba a Ndilu - neto de Nezinga e primeiro soberano, portanto depois da fundação do Estado através do herói Nezinga.
Nkinvi kya Mvemba
Nkulumba dya
Ngolowolo - que aparece em outras listas com o nome de NKUKULUMBA NEKOKANLOKO
Nekyanvu Kya IkwaNdom Malele kya Nsi - o soberano do Soyo à chegada de Diogo Cão.

Pretenderam sempre os nossos informantes que todos estes nomes pertencem à camada Mvemba Nzinga.
Contudo o nome Kya Nsi, de Dom Malele, que significa "da terra", parece desmenti-lo.
Somente estudos mais detalhados poderão esclarecer este assunto.

O Cisma Antonino do Século XVIII e suas consequências

A cosmogonia tradicional solongo não difere muito da dos outros povos desta parte de África.
Ela é simplesmente, como tudo o que pertenceu ao antigo reino do Kongo, muito mais agitada.
De uma maneira geral e breve, é próprio dessa cosmogonia o culta da água (implicando o da chuva com o seu sacerdócio específico e seu sistema de pensamento), da árvore (principalmente o da mulembeira ou mulemba ("ensendeira" na documentação que a ela se refere) e o da pedra.
Os espíritos são os Nkisi Nsi e habitam preferencialmente em certas lagoas como a nascente que abastecia a Missão Católica do Pinda e que se chamava Malu ma Madiya ("Água de Maria"), mas eles também costumam roçar-se pela folhagem da grande mulembeira da casa do chefe, o que é visível quando a copa da árvore se agita chamando a atenção dos velhos que conversam à sua sombra.
Os gémeos, essas criaturas controversas enviadas ao casal para o pôr à prova, habitam igualmente as camadas superficiais da água depositada. Mas sob essa camada há outra, a dos albinos, os adversários dos gémeos.
A pedra e a árvore são também habitáculos de cargas mágicas e geradoras de mitologia.
Da pedra surgiram um dia os homens brancos, ao passo que os negros tinham nascido das árvores.
O culto dos antepassados (de certo modo, o dos gémeos também) é talvez o mais formal da religião tradicional do Soyo.
Ele é praticado em todas as aldeias num altar constituído por um pequeno telheiro com não mais de um metro de altura, que esconde uns orifícios no solo através dos quais se comunica com os antepassados.
Chama-se Mvela e há entre estes altares uma hierarquia estabelecida que apresenta no Pângala, o mais importante dentre eles: o Mvela kya Soyo, que cobre o povo de todo o território, tanto para o Soyo-de-Cima como para o seu vizinho do Norte, onde se encontra.
Mas é, provavelmente o culto da chuva o mais determinante, porque se relaciona com a sobrevivência material das pessoas, com a fertilidade e com a mulher. O seu sacerdote é designado Kintumba e a sua importância é tão grande que a coroação de um novo soberano no Soyo tem de ser presidida e ministrada por ele.
É também o Kintumba que faz vir a chuva através de um culto hoje sincrético, onde se reza um padre-nosso em kisolongo, apenas parecido com o original cristão em português.
Sobre este contexto vem justapor-se a ideologia cristã desde o século XVI. Como afirma Thorton. Porém, essa cristianidade "... era aceite, não como uma nova religião mas como um culto sincrético, integralmente conservado com outros cultos do Kongo e derivando do Kongo e não da cosmologia cristã ou europeia".
Hoje a atitude religiosa dos basolongo é, de certo, predominantemente cristã. Mas atrás dessa atitude que devia implicar um sistema ideológico igualmente cristão desenham-se todas as correntes místicas que a atravessaram e reconfiguraram num composto bem difícil de interpretar.
Ressalta porém de tudo isso que da cosmogonia tradicional à ideologia oficial de hoje mais ou menos cristã, intromete-se com uma força afinal determinante, o culto antonino que nasce no fim do Século XVII na região de Mbridje (alto Ambriz) e se difunde a partir do Soyo absorvendo de forma avassaladora a consciência dos basolongo e não só, espalhando-se por todo o território Kongo, e novamente não só.
As raízes desse culto podem ser reportadas a uma velha do Ambriz, Apolónia Mfumaria, conhecida igualmente por Mfuta Mfumaria (Mfumadiya) que afirmava, entre outras, coisas ter encontrado no rio a cabeça de Cristo (uma pedra arredondada e vulgar) com sinais do seu descontentamento em relação aos pecados dos homens.
Daí surgiram os primeiros mandamentos do antonismo, condenando os antigos feitiços, o trabalho aos domingos, e sobretudo criticando o Senhor D. Pedro IV de Água Rosada, candidato ao trono central do Kongo, que se refugiava no Kimpango, temendo os seus rivais na posse da coroa até então abandonada.
Para a apóstola do antonismo, D. Pedro devia marchar sobre S. Salvador e proclamar-se rei do Kongo.
Com efeito o retrato político dessa época que resultava da desastrosa batalha de Ambwila contra o Governo colonial de Angola (1666), onde teriam perecido "mais de cem mil homens", era o de um Kongo desmembrado, dividido em ducados, e marquesados mais ou menos independentes a fazerem guerras uns aos outros e a recolherem escravos, com dois candidatos ao trono, de clãs rivais, respectivamente D. Pedro de Água Rosada, um Kimpangu, da estirpe dya Nlaza, e D. João II Nsimba a Ntando, um Kimpanzu, da estirpe dya Nlemba, refugiado em Bula ( mais ou menos Kinshasa actual) a evitarem enfrentar-se pela posse da coroa e pela reunificação do reino.
Depois da velha Apolónia surgiram outros apóstolos igualmente reformadores que aprofundavam mais um pouco o novo credo, até que do Tubi, uma aldeia solongo onde era a chefe (mfumu), surgia a figura impressionante de Beatriz Kimpa Mvita, a Santa Beatriz, ou Beatriz do Kongo como ficou conhecida pelos historiadores.
Beatriz, uma jovem muito bela segundo um relatório do capuchinho Bernardo da Gallo ao papa Clemente XI datado de 1717, relança o movimento que pela primeira vez se constitui em "cisma antonino".
Ela afirma ter estado no céu com S. António o qual lhe propôs um programa reformador que limpava o culto cristão de suas impurezas feiticistas e outras, como o crucifixo que não era mais que um amuleto, definia uma moralidade de tipo novo, e fixava como objectivo central a reunificação do Reino do Kongo, único meio de racionalizar o tráfico de escravos que andava ao sabor dos apetites dos grandes senhores, de criar uma sociedade crente, justa e sem preconceitos, de fugir também à influência terrível dos capuchinhos italianos que missionavam a coberto do Governo de Angola, do Papa e daqueles senhores da guerra.
Este movimento conheceu uma amplitude inesperada, e face à atitude irresoluta de D. Pedro de Água Rosada, dividiu mais o poder ainda em suspenso com um novo candidato ao trono, o General "Chibenga", ou seja, D. Pedro Constantino de Almada, então Capitão General de D. Pedro de Água Rosada.
A força do movimento era muito grande na primeira década do Século XVIII.
Os escravos bakongo abandonavam seus amos e apresentavam-se ao antonismo que se estruturava à maneira duma seita activa e contestatária.
Uma oração nova, a Salve Antoniana, substituía a Salve Reginae da liturgia católica e constituía o verdadeiro manifesto do antonismo.
Para os antonistas, Jesus Cristo era natural de S. Salvador (Bethelem), e mesmo a Virgem Maria e S. José eram bakongo de nascimento, naturais do Ducado do Nsundi (Nazaré).
Mas o fim do decénio pôs um termo a este sonho dourado e piedoso.
Beatriz, sob impulsão do P. Bernardo da Gallo (que evoca o Santo Ofício para se justificar) e a conivência da autoridade de D. Pedro (o Água Rosada), foi queimada na fogueira com o seu principal oficial, o "Anjo da Guarda" S. João, em 1708.
No ano seguinte o Chibenga, com o seu enorme exército meio antonino meio católico, foi derrotado na tremenda batalha do Monte Evululu e D. Pedro ocupou finalmente S. Salvador fazendo-se coroar rei do Kongo, como D. Pedro IV.
O antonismo refugiou-se no seu estrato cosmológico misturado com os "espíritos da terra", mas o ponto principal do seu programa, a restauração do reino do Kongo, fora cumprido.
Aparentemente a seita dissolveu-se após os desaires sofridos. Mas o culto e a fé nos dois principais protagonistas da ideologia antonina mantiveram-se e existem ainda hoje. St. António continua a ser em todo o Kongo um pólo essencial da mitologia e a santa, agora chamada Stª. Maria é, no Soyo, objecto de um culto discreto de fertilidade e de propiciação da chuva.
Um novo mito surge no Soyo em data incerta (após a queda do antonismo), que converte "D. Beatriz Kimpa Vita ou D. Beatriz do Kongo, mulher ligada à política e à história do reino, na Stª. Maria do Soyo, "espírito da terra" que habita nas águas da sua própria nascente e que se ocupa dos problemas dos basolongo"

O Mito de Diogo Cão

Diogo Cão, navegador português e figura histórica do Século XV, entra finalmente na história tradicional do Soyo como personagem mítica, embora aí apareça de uma maneira um tanto vaga, e contudo com a missão muito precisa de reiterar a eclosão de uma nova cultura entre os basolongo, de uma nova religião e de uma nova civilização técnica que faz surgir bens materiais de tipo novo.
Ora a maneira como o seu mito se desenvolve é a maneira clássica dos "heróis reformadores" da mitologia savânica desta parte de África.
A sua estrutura narrativa é semelhante à de toda essa mitologia.
O protagonista surge de algures, de longe, com uma comitiva; tem encontros com os mandatários dos soberanos locais mas não chega a encontrar o "rei" (ou "rainha") do Soyo.
A sua entrada em cena tem aspectos espectaculares que valorizam o personagem e que o definem como "estrangeiro".
Depois percorre um itinerário bem definido onde a via fluvial -- a principal via comercial: o rio Zaire -- se desenha como dominante, e acaba em Mbanza Kongo, junto do Ntotila.
Por uma das versões recolhidas desta lenda, sabe-se que Diogo Cão desembarcou numa praia do Soyo onde encontrou uma "pedra alta", sobre a qual havia dois santos: St. António e St. Maria.
O visitante queria levá-los para Portugal, mas St. Maria negou-se e veio a ser deixada na praia, criando uma derivação da lenda destinada a dar conteúdo ao culto de St. Maria que, como vimos atrás, ainda hoje se pratica no Soyo
Uma segunda versão diz que Diogo Cão chegou num barco à vela (Nkumbi ya Nkutuktu) a uma praia do Soyo em Mbanza Malele.
Aí encontrou um pescador, Ndom Lwolo, um súbdito da rainha Malele kya Nsi, nome que figura entre os primeiros da lista de soberanos do Mfutila Neanda ( o "Soyo de baixo").
Quando o navegador perguntou o nome da terra, o pescador respondeu: "Kinzadiko" ("não sei").
E ao interrogá-lo sobre o nome do grande rio, Ndom Lwolo respondeu: "Nzadi" ("Rio").
O visitante concluiu assim que o rio se chamava "Zaire".
Então Diogo Cão manifestou o desejo de ser apresentado à rainha.
A soberana foi informada deste acontecimento e desta solicitação, mas lembrou-se que o seu antepassado Nezinga recebera ordens do Tio, o Ntotila, que a impediam de, como seu suserano, estabelecer relações com povos estrangeiros.
Por isso a rainha recusou qualquer contacto com os visitantes mas mandou-os conduzir a Mbanza Kongo.
Um guia acompanhou, pois, a expedição portuguesa rio acima, até Noki, onde desembarcaram. O navio ficou fundeado no sítio chamado Nsuku a Nsambi a Nzombo, onde havia uma grande pedra com uma mulembeira que lhe crescera no topo.
Desse modo evitava-se subir até Matadi, "por causa dos ventos violentos da região, originados pelas montanhas".
Prosseguiram a viagem por terra ao encontro do Nekongoe da sua corte, que lhe ofereceram um grande banquete.
Note-se que o Nekongo, avisado por mensageiros, já sabia da chegada dos portugueses e já os esperava.
O visitante deu ao Ntotila como presente um rico pano que se chamou Nkampa.
O mito de Diogo Cão parece, enfim, pôr em relevo algumas particularidades da consciência solongo.
Nele se recorda com especial vigor a dependência do rei do Soyo para com o rei do Kongo, seu soberano.
Este aspecto não tem porém uma intenção didáctica pura, mas ele é, muito mais, o resultado do movimento de aproximação com Mbanza Kongo e portanto com o poder central por tradição, que crescia no Soyo à data da recolha do mito (1990).
Contudo sabe-se pertinentemente pela documentação existente , que os contactos de Diogo Cão com o dito "Mani Soyo", foram numerosos e até frutuosos, pois inclusive o chefe solongo fez-se baptizar.
Além disso a narração pretende mostrar através dum contorno simbólico que o culto actual (e bastante antigo) de St. Maria, surge da igreja católica (vem com Diogo Cão), mas em oposição a ela.
Recordemos que a santa, devendo ter "regressado" com o navegador como sucedeu a St. António, preferiu ficar no Soyo.
Enfim, para o historiador, há neste mito numerosos elementos significativos inspirando um mínimo de segurança que lhes permita serem tratados como factos históricos, quer pelo número muito elevado de informantes que os reconheceram -- o que dá fixidez a uma cultura histórica envolvente -- quer pela sua semelhança com a realidade concreta conhecida.
No episódio histórico de Diogo Cão fala-se de uma "pedra" (na ocorrência, o Padrão); essa "pedra", de que, no mito, o Navegador é miticamente (e não explicitamente) portador (ou criador) contém dois santos da religião católica:
St. António e St. Maria, o primeiro, tanto na versão antonina do Soyo como na do Kongo desaparece, abstratiza-se e só se manifesta indirectamente através da sua eleita, a santa; o itinerário mítico da expedição pelo rio Zaire conduzindo a uma "pedra" que evoca a descoberta de Yelala, facto histórico e por fim um Senhor do Soyo, um "Mani Soyo" que na narração mítica se chama Ndom Malele Kya Nsi e na narração histórica toma o nome de D. Manuel da Silva.
O que é pois o dito "Mito de Diogo Cão", senão a representação que o povo solongo se faz do facto histórico, modelado pela linguagem mítica local e pela ideologia dominante?
Assim sendo é também uma das fontes da história do Soyo cuja leitura implica a descodificação de um mito.

Bibliografia Sumária

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COSTA, José da (informante de terreno) - Mambu mampa. Mvila a Nezinga - (manuscrito), Pinda, 1963
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GALLO, Bernardo da - Relations (1694-1718) - in Jadin, 1961
GONÇALVES, António Custódio - Kongo, le lignage contre l'Etat - I.I.C.T., Univ. Évora, Évora, 1985
HILTON, Anne - The Kingdom of Kongo - Clarendon Press, Oxford, 1987
JADIN, L. - Le Congo et la scecte des Antoniens - Restauration du Royaume sous Pedro IV et la "Sant Antoine" congolaise (1694-1718) - Bulletin de L'Institut Historique Belge de Rome, T. XXXIII, pgs 411 a 614, Bruxelles, 1961
LUCCA, Lourenzo da - Relations sur le Congo, 1700-1717- in Jadin, 1961
MARCHAL, P. Gilles, s.sp. - Sur l'origine des basolongo - in "Equatoria", Revue des sciences congolaises,
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RAVENSTEIN, e.g. - The strange adventures os Andrew Battell of leight, in Angola and adjoining regions, 1950. THORTON, J. - The development of un african catholic churc in the kingdam os Kongo, 1491- 1750 - in JOURNAL OF AFRICAN HISTORY, 25, n.2 (1984) pgs 147-167, Cambridge





Tráfico de Escravos na Bacia do Congo

 E. J. Glave

Este texto é uma resposta ao vídeo “Kony 2012” que com mais de 100 milhões de visualizações em apenas seis dias, tornou-se o maior viral da história. Um comentarista pediu que antes que se fizesse qualquer julgamento sobre o assunto é necessário conhecer como era o sistema de vida dos africanos antes do contacto com os brancos e indicou o seguinte texto:

The Slave Trade in Congo Basin

Um artigo de 1890, escrito por E. J. Glave, um dos oficiais pioneiros do jornalista explorador, Henry Morton Stanley, atesta que os negros não foram simplesmente arrancados mas resgatados da África.

Este artigo foi publicado originalmente no “The Century Magazine” em Abril de 1890. Todas as ilustrações são do artigo original

A região do coração da África está a ser rapidamente despovoada em consequência da enorme lista de mortos causada pelo bárbaro comércio de escravos.
Não é apenas a servidão que a escravidão implica clamando o interesse do mundo civilizado, mas  o derramamento de sangue, a crueldade e a miséria que isso envolve.
Durante a minha residência na África Central, por várias vezes viajei pelas aldeias ao longo do Rio Zaire ou Congo e dos seus quase desconhecidos afluentes. Nas  aldeias por onde passei,  testemunhei evidências da terrível natureza do mal.
Não porque tivesse procurado testemunhar os sofrimentos que o tráfico transmite à humanidade, mas pela crueldade encontrada por todos os lugares,  que visitava  e inevitavelmente a presenciava.
Não são apenas  os árabes os únicos que praticam raides escravistas na África Central.
O limite ocidental dessas práticas é o rio Aruwhimi, pouco abaixo das cataratas de Stanley. O esclavagismo inter-tribal existe a partir desse ponto, atravessa todo o Congo em direcção ao Oeste, alcançando o Oceano Atlântico.
Durante os seis anos que residi na região do Rio Congo, vi poucos árabes.
Neste relatório divulgarei apenas as minhas experiências relacionadas com “o assunto da escravatura entre os próprios nativos”.
Fui para o Congo em 1883. Viajei sem parar com destino ao interior. Ao chegar a Stanley Pool, recebi ordens de meu chefe, Mr. Henry M. Stanley para acompanhá-lo no seu pequeno barco En Avant.
Naqueles dias, Stanley estava envolvido no estabelecimento de alguns postos de observação em pontos estratégicos e importantes juntos às margens do alto Congo.

Lukolela, mil e duzentos e quarenta quilómetros interior adentro, foi uma das escolhidas.

Tive a honra de ser seleccionado por ele para ser o chefe desse posto. Como nunca houve um homem branco vivido nesse lugar, comecei por ter um imenso trabalho para me estabelecer.
O local escolhido do nosso futuro acampamento seria uma densa floresta, que até ao momento estava mais familiarizado com o trombetear dos elefantes e do rugido do leopardo do que dos seres humanos.
De início os nativos se opuseram à minha permanência, e rapidamente passaram a questionar Stanley.
Disseram :
"Nós prometemos-te aceitar um homem branco aqui, mas voltamos a falar sobre o problema, e concluímos que seria melhor  instalar o homem branco noutro lugar. Nós os chefes,  reunimos e conversamos. Chegamos à conclusão de que não é desejável ter uma criatura tão terrível na região".
Stanley disse: "Porque razão? O que tem ele de mau por  vocês se oporem? Se nunca o viram!!". (Ainda não tinha desembarcado, porque estava muito enjoado e incapaz de sair do barco). Eles disseram: "Não, nós não o vimos, mas já ouvimos falar dele".
Stanley então disse: "O que você ouviu sobre ele?".
Eles responderam: "Ele é metade leão e metade búfalo, tem um olho no meio da testa, e vem armado com dentes afiados e pontiagudos, e está continuamente a abater e devorar seres humanos, é verdade?"
Stanley respondeu-lhes: "Não sabia que ele era uma criatura tão terrível, mas  vou chamá-lo, e deixar que vocês façam seus próprios julgamentos".
Após a minha presença, essa ilusão imediatamente foi dissipada, afinal, após vários dias de sofrimento por essa doença aguda,  realmente essa criatura não parecia muito formidável e sanguinário.
Ali vivi durante vinte meses, o único homem branco, de modo que  tive todas as oportunidades para estudar o carácter e os costumes dos nativos.
 


VIDA DOS NATIVOS

Para colocar diante do leitor um retrato da vida selvagem, intocada pela civilização, basta esboçar uma aldeia típica de Lukolela da maneira que  intimamente conheci. O distrito contém cerca de três mil pessoas, a terra ocupada por eles se estende ao longo da margem por três quilómetros, as aldeias pontilham esta distância em grupos de cinquenta ou sessenta casas. As casas são construídas em ambos os lados de uma rua comprida ou em praças. São cobertas com folhas de palmeira ou grama, sendo as paredes feitas de bambu rachado ao meio. Algumas dessas moradias contêm dois ou três compartimentos, com apenas uma entrada; enquanto outras são estruturas longas, divididas até dez ou doze quartos, cada uma tem uma entrada independente. Na parte de trás das habitações possuem  grandes plantações de bananeiras, enquanto por cima delas se vêem  altas e imponentes palmeiras cobrindo as ruas e as cabanas com sua própria  sombra.

É no frescor da manhã que a maior parte dos serviços da aldeia é executada. A maior parte das mulheres, depois das seis horas, vai às suas plantações, trabalhar até o meio-dia. Outras  permanecem na aldeia para cuidar da culinária e outros assuntos domésticos. Grandes caldeirões de barro contendo peixes, bananas, ou mandiocas, ficam a ferver  sobre fogueiras, em torno das quais se agrupam os meninos e, meninas e também  idosos aproveitando o calor, até que os raios quentes do Sol da manhã apareçam.

Enquanto isso, os pescadores juntam suas armadilhas. Coam as suas armas, remam em direcção aos  locais de pesca. Os caçadores preparam suas lanças, arcos e flechas e saem à procura das trilhas de suas caças. O ferreiro da vila acende o fogo, o enxó (desbastador de madeira) do carpinteiro ocupado no trabalho é ouvido; as redes de caça e pesca são desenroladas e examinadas, o curandeiro está ocupado gesticulando com seus feitiços.

Conforme o Sol se eleva no horizonte, a azáfama tornar-se-á  mais  animada. O calor do fogo é descartado, todos os departamentos dessa indústria se enchem de vida - o cenário  rende-se alegremente aos rostos felizes e sorridentes dos pequeninos que correm aqui e ali, entretidos nas suas brincadeiras.

Ao meio dia o calor sufocante do Sol tropical obriga a uma parada do trabalho. Uma quietude preguiçosa prevalece em todos os lugares. Todos os recantos sombreados da vila são ocupados pelos grupos que dormem, outros iniciam uma conversa, outros passam o tempo a cuidar dos cabelos ou participam na ajuda dos problemas da higiene pessoal conforme o seu costume nativo, como por exemplo raspar as sobrancelhas ou arrancar os cílios -  cuidam também de todos os pêlos da face, excepto os do queixo, que são trançados sob a forma da cauda de rato.

Quanto mais rentes forem cortadas as unhas das mãos melhor, ficam mais  elegantes e vistosas. Até à ponta do dedo, a unha fica cortada até à polpa, se  alguém quiser  postar de belo ou de bela sempre tem alguma graça as unhas das mãos ou dos pés inteiramente aparadas.

À hora de almoçar, a aldeia assume um ar de calmaria, quebrada apenas por ocasionais risadas de grupos que discutem os méritos do vinho nativo.

Toda a gente tem a mesma fraqueza de exigir, a maior parte das vezes, bebidas mais fortes que a água. A natureza providenciou ao africano o suco de palmeira, uma bebida muito palatal, que quando fresca se assemelha a uma soda limonada bem forte, mas embriagante nos seus efeitos.

É obtida da seguinte forma: os aldeões encarregados dessa indústria particular sobem à árvore, aparam algumas dos ramos com folhas, e de seguida, fazem três ou quatro furos de meia polegada de diâmetro no pé da copa até o cerne da árvore.

De cada um destes furos fluirão a cada dia cerca de meio litro de suco, uma pequena cabaça é colocada para recolher o líquido. O conteúdo destas cabaças é recolhido  todas as manhãs. A bebida é denominada pelos nativos como malafu, bem conhecida por todos os viajantes europeus, como vinho de palma.

Entre três e quatro horas da tarde a vila novamente retoma o seu ar de actividade, que é mantido até o anoitecer. Nesta região, perto do Equador, o Sol se põe às seis horas. Todas as ferramentas são deixadas de lado, o trabalho é suspenso. As fogueiras são novamente acesas, tapetes são levados para fora e espalhados ao redor, e a principal refeição do dia é saboreada, depois os nativos se reúnem em torno do fogo para conversar sobre os acontecimentos do dia e os planos para o futuro. Os jovens vão para os terreiros e se embalam em suas danças nativas até meia-noite.

Esta dança à noite é um espectáculo para ser lembrado. Os artistas se organizam em círculos e dançam no ritmo da batida dos tambores, seu único acompanhamento, e só ocasionalmente cantam suas canções nativas. A paisagem tropical em volta permanece delineada em forte contraste, as árvores mais próximas, às vezes, reflectem a sensacional luz das fogueiras, que também atinge os corpos reluzentes dos dançarinos, criando um contraste violento de luz e sombra, e toda a cena se faz impressionante pela música selvagem, porém harmoniosa.

À meia-noite, quando todos os moradores já se retiraram para suas cabanas, reina o silêncio, quebrado, às vezes, pelo piado de um estranho pássaro, o rugido de um leopardo rondando por ali, ou algum outro animal selvagem, e os variados sons dos insectos tropicais.
O EFEITO ESCRAVIDÃO

Este é um retrato fiel do dia a dia da vida levada em uma centena de aldeias do Congo, e se não fosse pela existência da escravidão, isso atravessaria de um ano ao outro sem nenhum distúrbio. É a presença do escravo na aldeia que brutaliza uma comunidade ora inofensiva e pacífica. É a influência venenosa, que um homem recebe por seu poder de vida e morte sobre o infeliz que ele comprara, e que estimula seu instinto selvagem para derramar, durante as execuções e cerimónias, o sangue vivo do homem, mulher ou criança que ele obteve - talvez em troca de algumas barras de latão, alguns metros de pano de Manchester. Aqui em Lukolela, por exemplo, mal tinha se estabelecido em meu acampamento, quando fui apresentado a uma daquelas cenas horríveis de derramamento de sangue que ocorrem com frequência em todas as aldeias ao longo do Congo, e que será apregoada enquanto a vida de um escravo for contada como nada, e o derramamento do seu sangue contar tanto quanto o de uma cabra ou de uma galinha.

Neste caso particular a mãe de um chefe tinha morrido, foi decidido, como de costume, comemorar o evento com uma execução. No primeiro sinal da madrugada a batida lenta e compassada de um grande tambor anunciava a todos o que iria acontecer, e avisava ao pobre escravo, que haveria de ser a vítima, que seu fim está próximo. Havia muita evidência que algo incomum estava prestes a acontecer, e que o dia seria dedicado a alguma cerimónia. Os nativos se reuniram em grupos e começaram cuidadosamente a preparar suas vestes, vestir seus alegres panos de ombro, e enfeitar suas pernas e braços com pulseiras de metal brilhante, e sempre se deliciando com gestos e risadas selvagens quando discutem o evento. Após tomarem uma leve refeição, trouxeram de suas casas todos os instrumentos musicais disponíveis. Os tambores são fortemente batidos, enquanto grupos de homens, mulheres e crianças formam-se em círculos e animadamente desempenham danças, que consistem em contorções violentas dos membros, acompanhadas com cânticos selvagens e com repetidos toques das cornetas de guerra feitas de chifre, cada bailarino tentando superar seu companheiro na violência do movimento e na força do pulmão.

Por volta do meio-dia, por pura exaustão combinada com o calor do sol, eles são forçados a parar, quando grandes jarros de vinho de palma são apresentados e começam as rodadas embriagantes, aumentando o entusiasmo geral, mostrando sua natureza selvagem em cores marcantes. O pobre escravo, que todo esse tempo ficou deitado no canto de alguma cabana, com os pés e as mãos algemados, sendo vigiado de perto, sofrendo a agonia e o suspanse que este tumulto selvagem sugere a ele, é agora levado para alguma parte proeminente da aldeia, onde vai receber as vaias e zombarias da multidão embriagada de selvagens. Os assistentes do carrasco, depois de terem seleccionado um local adequado para a cerimónia, trouxeram um toco de madeira  de mais ou menos um palmo e meio, onde o escravo é então colocado sentado sobre isso, suas pernas são esticadas em linha recta para frente, seu corpo é amarrado a uma estaca por detrás, cuja altura chega próximo dos ombros. E uma estaca é colocada por baixo de cada axila para escorar o corpo, onde seus braços são firmemente amarrados; outras amarrações são feitas em pequenas estacas cravadas no chão, perto dos tornozelos e joelhos.

Uma vara é agora fincada em frente da vítima numa distância de três metros, no topo estão amarrados vários cordões, que estão presos pela outra ponta, a um anel de bambu. A vara é então curvada como uma vara de pesca, e o anel é fixado ao pescoço do escravo, o qual se mantém rígido e imóvel pela tensão. Durante esse preparo, as danças são retomadas, agora mais selvagem e brutal ao extremo pela condição de embriaguez do povo. Um grupo de dançarinos cercam a vítima e começam a imitar as contorções do seu rosto que a dor causada por esta tortura cruel a obriga a mostrar. Mas ela não deve esperar nenhuma simpatia deste bando impiedoso.

Nesse momento, a certa distância, se aproxima duas linhas de jovens, cada um segurando uma folha de palmeira, de modo que um arco é formado entre eles, por onde o carrasco é escoltado. A procissão passa num passo lento, mas dançante. Ao chegar perto do escravo condenado, todas as danças, cantos e tambores cessam, e a turba embriagada toma seus lugares para testemunhar o último acto do drama.

Um silêncio sobrenatural acontece. O carrasco usa um capacete feito de penas negras de galo, o seu rosto e pescoço estão escurecidos com carvão, excepto os olhos, cujas pálpebras são pintadas com gesso branco. Suas mãos e braços até o cotovelo, e os pés e pernas até o joelho, também estão escurecidos. Suas pernas estão profusamente adornadas com largas tornozeiras metálicas, e ao redor da cintura possui peles de gato selvagem amarradas. Então ele executa uma dança selvagem em torno de sua vítima, de vez em quando faz uma finta com a faca, um murmúrio de admiração acontece vindo da multidão reunida. Ele se aproxima e faz uma marca de gesso fino no pescoço do homem predestinado. Depois de duas ou três gingadas de sua faca para obter o balanço certo, ele prepara o golpe fatal, e com um golpe de sua arma super-afiada, ele separa a cabeça do corpo.

A visão de sangue traz um clímax de frenesi aos nativos: alguns deles furam selvaticamente com suas lanças o tronco ainda tremendo, outros o cortam com suas facas, enquanto o restante entra numa luta medonha pela posse da cabeça, que foi arremessada para o ar pela tensão liberada da vara. Quando aquele que consegue segurar o troféu é perseguido pela turba embriagada, o horrível tumulto se torna ensurdecedor; um lambuza a face do outro com sangue, e como resultado sempre surgem brigas, onde facas e lanças são utilizadas livremente. A razão dessa ansiedade em possuir a cabeça é esta: o homem, que ficar com a cabeça contra todos os concorrentes até o pôr do Sol, receberá um presente do chefe da aldeia pela sua bravura. É dessa maneira que eles testam os bravos da aldeia, e eles dirão com admiração, em relação ao herói local, "Ele é um homem corajoso, ele manteve duas cabeças até o anoitecer".

Quando o gosto por sangue tem sido de certa forma satisfeito, eles novamente voltam ao seu canto e dança enquanto outra vítima é preparada, e a mesma chocante exibição é repetida. Às vezes até vinte escravos são abatidos  num único dia. A dança e o tumulto geral dos bêbados continua até meia-noite, quando mais uma vez reina o silêncio absoluto, em contraste ao abominável tumulto do dia.

Eu frequentemente ouço os nativos se vangloriarem da habilidade de seus carrascos, mas duvidava da sua capacidade de decapitar um homem com um único golpe da faca que usam, feita com um metal mole. Imaginava que seriam obrigados a dar golpes para separar a cabeça do corpo. Quando testemunhei esse espectáculo nauseante estava sozinho, desarmado e absolutamente impotente para interferir. Mas a silenciosa agonia deste pobre mártir negro, que morreu sem cometer nenhum crime, mas simplesmente porque era um escravo, - cujos movimentos comoventes foram ridicularizados pelos selvagens frenéticos, e a cada grito de agonia era um sinal para a explosão desenfreada dum Carnaval hediondo daquela selvajaria - apelou tão fortemente ao meu senso de dever que decidi impedir pela força qualquer repetição desta cena. Declarei a minha resolução numa assembleia dos principais chefes, e apesar de terem feito várias tentativas, não houve mais execuções durante o resto da minha estadia naquele distrito.

Algumas palavras são necessárias para definir a posição dos chefes de aldeia, como o mais importante factor na vida selvagem africana, pois de uma forma ou de outra, eles estão intimamente ligados com as piores características do sistema esclavagista, e são responsáveis por quase todas as atrocidades praticadas nesse imbróglio.

Tais chefes são os líderes das aldeias, e são classificados de acordo com o número de seus guerreiros. O título de chefia não é hereditário, e sim adquirido por um membro da tribo por provar a sua superioridade em relação a seus companheiros. O chefe mais influente numa vila tem necessariamente o maior número de combatentes, e estes são principalmente escravos, pois a fidelidade de um homem livre pode não perdurar. A ideia do chefe sobre riqueza é - escravos. Qualquer tipo de dinheiro que ele possa ter será convertido em escravos logo na primeira oportunidade. A poligamia é regra em toda a África Central, e um chefe compra quantas escravas  pode pagar. Também se casa com mulheres livres - que é, afinal, apenas outra forma de compra.


MODOS DE TORTURA.

Todas as tribos que conheci têm uma ideia de imortalidade. Eles acreditam que a morte que os leva para outra vida, é uma continuação das mesmas condições da vida que estão a levar agora; Um chefe acha que, quando  entra nessa nova existência, será acompanhado de um número suficiente de escravos que o credenciará a ter o mesmo valor no outro mundo que  tem no presente. A partir desta crença é que emana um dos seus costumes mais bárbaros - a cerimónia de sacrifícios humanos após a morte de alguém importante. Após a morte de um chefe, certo número de seus escravos é seleccionado para serem sacrificados, para que seus espíritos possam acompanhá-lo para o outro mundo. Se este chefe possui trinta homens e vinte mulheres, sete ou oito dos primeiros e seis ou sete dos últimos morrerão. Os homens serão decapitados, e as mulheres serão estranguladas.

Quando uma mulher está para ser sacrificada, ela será adornada com pulseiras de metal brilhante, suas vestes serão cuidadosamente preparadas, seus cabelos serão perfeitamente trançados, e seu corpo será coberto por tecidos fortemente coloridos.

Suas mãos serão então atadas para trás, uma corda será passada em volta de seu pescoço e a outra extremidade será passada por cima do galho de uma árvore mais próxima, e um sinal é dado para o inicio da zombaria; e enquanto o corpo pendurado no ar realiza seus movimentos convulsivos, os selvagens o seguem imitando primorosamente. Muitas vezes acontece de uma criança também se tornar vítima dessa terrível cerimónia, sendo enterrada viva na sepultura, servindo de travesseiro para o chefe morto. Estas execuções ainda são perpetradas em todas as aldeias do Alto Congo.

Mas o escravo não é privado de sua vida apenas com a morte do chefe da tribo, quando sua sorte é lançada. Vamos supor que a tribo à qual ele pertence esteja numa guerra auto-destrutiva com outra tribo do mesmo distrito, e por alguma razão política o chefe resolve declarar o fim da disputa, então um encontro é organizado com o seu rival. Na conclusão do encontro, para que o tratado de paz seja solenemente ratificado, sangue deve ser derramado.

Um escravo é, portanto, seleccionado e o modo de tortura antes de sua morte varia entre os distritos. No distrito de Rio Ubangi o escravo é suspenso de cabeça para baixo no galho de uma árvore, e ali é deixado até morrer. Porém, bem mais horrível é o destino desses miseráveis em Chumbiri, Bolobo, ou nas grandes aldeias ao lado do rio Irebu, onde a vítima expiatória é enterrada viva, com a cabeça deixada acima do solo. Mas antes, todos os seus ossos são esmagados ou quebrados, e numa silenciosa agonia ele espera por sua morte. Geralmente é enterrado numa encruzilhada, ou ao lado dum caminho bem trilhado na saída da aldeia, e todos os moradores que passam por lá, mesmo que sintam uma pontinha de pena momentânea, nunca se atrevem a aliviar ou acabar com a miséria do condenado, pois seriam punidos com as mais severas penalidades.


Como os nativos são escravizados.

Os prémios da guerra entre tribos fornecem os mercados com escravos, cuja marca cicatrizada, mostra que eles são membros de diferentes famílias e de aldeias muito distantes.

Mas há algumas tribos, as mais inofensivas e mais pacíficas, cuja fraqueza os coloca, frequentemente, à mercê de seus vizinhos mais poderosos.

Sem excepção, a raça mais perseguida no território Congo Free State é a Balolo com suas tribos, que habitam a área que envolve os rios Lulungu, Malinga, Lupuri, e Ikelemba.

Eu quero aqui mencionar que o prefixo "Ba" na língua dessas pessoas designa o plural, por exemplo, Lolo significa um Lolo - Ba-lolo, significa o povo Lolo.

Essas pessoas são naturalmente meigas e inofensivas. Suas pequenas, e desprotegidas aldeias são constantemente atacadas pelas poderosas e ociosas tribos do Lufembe e Ngomb.

Estas duas tribos são vorazes canibais.

Cercam as aldeias dos Lolos à noite, e ao primeiro sinal do alvorecer invadem as aldeias dos distraídos Lolos, matando todos aqueles homens que resistem e aprisionando todos os demais. Depois os mais fortes são seleccionados, algemados pelas mãos e pés para impedir sua fuga. O restante eles matam, e sua carne é distribuída entre si.

Como regra geral, após o raide eles formam um pequeno acampamento, acendem suas fogueiras, apoderam-se de todas as bananas da aldeia, e devoram a carne humana. Em seguida, marcham para um dos numerosos mercados de escravos, onde eles trocam os cativos do Rio Lulungu por colares, roupas, fios de latão, e outras bugigangas com os traficantes de escravos. E esses traficantes, por sua vez, agrupam seus escravos em suas canoas e os levam às aldeias do rio Lulungu onde estão os mercados mais importantes.

Masankusu, situado na junção dos afluentes Lupuri e Malinga, é de longe o mais importante centro de comércio de escravos. O povo de Masankusu compram seus escravos dos assaltantes de Lufembe e Ngombe, e os vendem aos nativos e comerciantes do rio abaixo. Em Masankusu, os escravos são expostos para venda em longos galpões abertos, cobertos de grama  presa em madeira lavrada. É comovente ver os barracões num desses galpões de escravos. Onde são amontoados como animais.

 NO GALPÃO DOS ESCRAVOS.

As imagens que acompanham, a partir de esboços que  tracei em Masankusu, dão uma ideia do sofrimento que é suportado pelos cativos em inúmeros mercados. Eles são amarrados em troncos cortados grosseiramente que lhes causam enormes feridas em seus membros, às vezes algum é imobilizado pelo peso de um tronco de árvore sobre seu corpo, enquanto seu pescoço é preso numa forquilha de madeira. Outros permanecem sentados por dias com seus membros amarrados numa única posição, presos ao pilar por um cordão amarrado a um anel de bambu que envolve seus pescoços ou são entrelaçados com seus cabelos lanosos.

Muitos morrem por pura fome, enquanto que outros recebem alimentação o suficiente para sobreviverem, e mesmo assim com muita relutância. Essas famintas criaturas, de facto, formam uma visão verdadeiramente deplorável.

Depois de sofrer nesse cativeiro por um curto período de tempo eles se tornam meros esqueletos. Ali se pode ver: mães com seus bebés, jovens de ambos os sexos, meninos e meninas, e até mesmo bebés que ainda não sabem andar, cujas mães morreram de fome, ou foram mortas pelos Lufembes. Raramente se vêem velhos, estes são todos mortos nos ataques: seu valor comercial é muito pequeno, nenhum fardo é carregado por eles.

Ao testemunhar os grupos desses infelizes pobres e indefesos, com suas aparências definhadas de olhos afundados, seus rostos com semblantes de muita tristeza, não é difícil perceber a dor intensa que sofrem internamente, mas eles sabem muito bem que nada adianta apelar para a simpatia de seus impiedosos senhores, que foram acostumados, desde sua infância, a testemunhar actos de crueldade e brutalidade, de modo que para satisfazer sua insaciável ganância eles próprios vão cometer ou permitirão que seja cometido, qualquer atrocidade, até mesmo pior. Essa lamentável visão num desses barracões de escravos não representa nem a metade da miséria causada pelo tráfico – casas destruídas, mães separadas de seus bebés, maridos de suas esposas e irmãos de suas irmãs.

Na minha última passada por Masankusu vi uma mulher escrava que tinha com ela seu filho, cujo esfomeado corpo, ela carregava enquanto mamava em seu exaurido seio. Fui atraído pela tristeza do seu rosto, que demonstrava um enorme sofrimento. Perguntei-lhe a causa disso, e ela soluçando me respondeu em voz baixa o seguinte: "Eu vivia com meu marido e meus três filhos numa aldeia do interior, a poucos quilómetros daqui. Meu marido era um caçador. E dez dias atrás, os Lufembes atacaram a nossa vila; meu marido defendeu-se como pôde, mas foi dominado e ferido com lanças até à morte junto com vários outros moradores. Fui trazida para cá com meus três filhos, dois dos quais já foram comprados pelos comerciantes. Eu nunca mais os verei. Talvez eles vão matá-los após a morte de algum chefe, ou, talvez, para servir de alimento. Meu filho restante, você vê, está doente, morrendo de fome, e eles não nos dão nada para comer. Imagino até que ele seja tirado de mim em poucos dias, pois o chefe, temendo que ele morra e se torne uma perda total, o tem oferecido por um preço muito pequeno. Quanto a mim", disse ela "eles vão me vender para uma das tribos vizinhas, para trabalhar nas lavouras, e quando eu me tornar velha e incapacitada para o trabalho, então serei sacrificada".

Havia certamente quinhentos escravos expostos à venda nesta única aldeia. Grandes canoas estavam constantemente chegando vindas do rio abaixo, com mercadoria de todos os tipos para trocar pelos escravos. Outro grande comércio é realizado entre os rios Ubangi e Lulungu. As pessoas que habitam o pontal do Ubangi compram os escravos Balolos em Masankusu e em outros mercados, os levam até o rio Ubangi para trocá-los por marfim com outros nativos. Estes nativos compram os escravos apenas para alimento. Após comprá-los, os escravos são alimentados com bananas maduras, peixes e azeite, e quando estiverem em boas condições são mortos. A cada mês, centenas de escravos Balolos são levados para o rio e sacrificados. Outra grande quantidade de escravos é vendida para as grandes aldeias do Congo, para suprir as vítimas das cerimónias de execução.

Muitas vidas são perdidas durante a captura, e muitas sucumbem no cativeiro por fome. Do restante, uma parte é vendida para se tornarem vítimas do canibalismo e das cerimónias dos sacrifícios humanos. Poucos são os que realmente conseguem sobreviver e prosperar.
 
Canibalismo

O canibalismo existe entre todos os povos do Alto Congo a Leste da longitude 16 ° E, e isso prevalece numa extensão ainda maior entre os povos que habitam as margens dos seus numerosos afluentes. Durante uma viagem de dois meses pelo rio Ubangi, fui constantemente posto em contacto com o canibalismo. Os nativos orgulham-se do número de caveiras que possuem, quando mostram o número de vítimas que foram capazes de obter.

Vi uma cabana indígena, em torno da qual fora construída uma mureta feita de barro com 30 centímetros de largura, onde havia fileiras de crânios humanos, formando um quadro horripilante. Aquilo que o chefe mais se orgulhava, pela maneira com que demonstrava e mais chamava a minha atenção, eram as pencas formadas com vinte ou trinta caveiras, dependuradas em posições de destaques da aldeia.

Perguntei a um jovem chefe, cuja idade, certamente, não passava de vinte e cinco anos, quantos homens ele havia comido na sua aldeia, e  respondeu: trinta. Se espantou com o horror que demonstrei pela sua resposta. Também numa aldeia, ao comprar uma presa de marfim, os nativos pensaram que talvez pudesse comprar crânios e várias braçadas dessa mercadoria foram trazidas para o meu barco em poucos minutos. Senti que seria um pouco difícil negociar no rio Ubangi, pois o padrão de valor por ali era a vida humana - carne humana. Recebi em diversas ocasiões, ofertas para trocar um homem da minha tripulação por uma presa de marfim, e também me lembro duma oferta para trocar um dos tripulantes do meu barco por uma cabra. "Carne por carne", disseram eles. Fui muitas vezes convidado, também, para ajudá-los na luta contra outras tribos vizinhas. Eles diziam: "Você pode levar todo o marfim, que ficaremos com a carne", ou seja, é claro, todos os seres humanos que poderiam ser mortos na luta. Os mais hostis deles frequentemente ameaçam que iriam nos comer, e eu não tenho dúvida de que eles teriam feito isso se não fossemos forte o suficiente para cuidar de nós mesmos.

Durante a minha primeira visita às águas do alto Rio Malinga, o canibalismo chamou minha atenção pela forma diabólica que foi realizado. Numa noite eu ouvi gritos penetrantes duma mulher, seguido por um abafado gemido, então ouvi gargalhadas e tudo voltou ao silêncio novamente. De manhã fiquei horrorizado ao ver um nativo oferecendo aos meus homens um pedaço de carne humana, em cuja pele havia a tatuagem que marcava a tribo Balolo. Mais tarde me contaram que o grito que ouvi durante a noite era de uma escrava cuja garganta havia sido cortada. Eu fiquei ausente desta vila de Malinga por dez dias. Na minha volta, eu perguntei se algum derramamento de sangue havia acontecido, e fui informado de que outras cinco mulheres haviam sido mortas.

Na minha estada no rio Ruki, no início deste ano,  fui apresentado à outra prova do terrível destino dos escravos. Em Esenge, uma aldeia onde eu parei a fim de cortar lenha para o meu barco, ouvi sinistras batidas de tambores e sons de muita alegria e animação. Fui informado por um dos nativos da vila que uma execução estava acontecendo. Pela minha indagação se eles tinham o hábito de comer carne humana, ele respondeu: "Nós comemos o corpo inteiramente." Eu ainda perguntei o que eles faziam com a cabeça. "Comemos", ele replicou, "mas primeiro a colocamos no fogo para queimar o cabelo".

Existe um pequeno rio situado entre o Ruki e Lulungu, o chamado Ikelemba. Na sua foz não possui mais do que 130 metros de largura. Suas águas são navegáveis por 220 quilómetros através das terras dos Lolos. Em proporção ao seu tamanho ele fornece mais escravos do que qualquer outro rio. Ao observar no mapa, vê-se que o Ikelemba, Ruki, e Lulungu correm paralelos um ao outro. As grandes tribos esclavagistas que habitam as terras entre esses rios, trazem seus escravos aos mercados mais próximos descendo qualquer um desses rios.

O MERCADO LOCAL DE ESCRAVOS

Há algumas clareiras em certos intervalos ao longo das margens do Ikelemba, onde em determinados dias são realizados os pequenos mercados locais para a troca de escravos. Na medida em que se sobe o rio nota-se que os pequenos assentamentos às margens do rio vão se tornando cada vez mais frequentes, e oitenta quilómetros acima de seu pontal, sua margem esquerda torna-se densamente povoada. É notório que as vilas são todas do lado esquerdo do rio, pois seu lado direito é infestado por tribos saqueadoras e itinerantes que atacam qualquer assentamento praticado em sua margem. Todos os escravos deste rio são Balolos, uma tribo que é facilmente reconhecida pelas exageradas tatuagens marcadas na testa, nas têmporas e no queixo.

Durante minha visita de dez dias a esse rio encontrei dezenas de canoas das regiões da foz do rio Ruki e do distrito Bakute, cujos proprietários vieram para a compra de escravos, e estavam retornando com suas mercadorias adquiridas.

Quando são transportados pelo rio, por conveniência, os escravos são aliviados dos seus pesados grilhões. Os comerciantes sempre levam consigo, pendurados nas bainhas de suas facas, algemas leves feitas de corda e bambu. O escravo quando comprado é colocado no assoalho da canoa numa postura de agachamento com as suas mãos à frente, atadas por essas algemas. Durante a viagem ele é cuidadosamente guardado pela equipe de remadores que trabalham em pé, e quando vem a noite, a canoa é aportada nas margens, suas mãos são mudadas para trás e amarradas para evitar que tente fugir roendo a corda. Para tornar qualquer tentativa de fuga impossível enquanto dormem, seu pulso é atado ao de um de seus mestres. Numa das canoas notei que havia cinco comerciantes, e sua carga de miseráveis humanos era composta de treze magros escravos Balolos entre homens, mulheres e crianças pequenas, todos mostrando, inequivocamente, através de seus olhos fundos e corpos definhados a fome e a crueldade, a que foram submetidos. Esses escravos são levados para as grandes aldeias no pontal do rio Ruki, onde são trocados por marfim com as pessoas do Ruki ou do distrito Ubangi, que os compram para abastecer suas orgias canibais.

Alguns, no entanto, são vendidos pela redondeza, os homens para serem usados como guerreiros, e as mulheres como esposas, mas em comparação com os números daqueles que sofrem com a perseguição dos caçadores de escravos, muito pouco de facto sobrevivem para alcançar uma posição segura, porém muito humilde numa vila.

O estado deplorável destes Balolos sempre me entristeceu, intelectualmente falando eles possuem um grau bem acima de seus vizinhos; e realmente é devido à sua natureza mansa, e à sua disposição pacífica, confiante, que facilmente caem como presa das hordas degradadas e selvagens de seu distrito.

Eles têm gosto artístico e genialidade mecânica, fazem escudos primorosamente tecidos, e curiosas lanças e facas moldadas e decoradas. São extremamente inteligentes, fiéis, e, quando devidamente treinados, são corajosos.

NO EXTREMO INTERIOR.

Nos meses que  viajei pelo Alto Congo e seus afluentes, em várias ocasiões tive que defender-me contra a hostilidade dos nativos. Minha equipe era composta por quinze homens, a maior parte dos quais eram Balolos, e nunca fui enganado por eles. Quando os empreguei,  chegaram às minhas mãos como pedra bruta. Eram selvagens, alguns deles canibais, mas são de natureza muito maleável, e com uma política firme e justa fui capaz de convertê-los em servidores dedicados e fiéis.

Como prova do que pode ser feito por ganhar a confiança dos nativos, através de uma política de firmeza e justiça, acho que posso, seguramente, citar a minha experiência na Estação Equador. Permaneci por lá quase um ano, com apenas um soldado Zanzibar, todo o resto do meu povo eram nativos que recrutei pelas aldeias vizinhas. Estava cercado por todos os lados por pessoas poderosas, que, se quisessem, poderiam facilmente ter-me superado e pilhado o meu posto. Mas nunca houve tentativa do menor acto de hostilidade ou de natureza hostil, senti-me  tão seguro entre eles como sinto na cidade de Londres ou Nova Iorque.

É verdade que os nativos não tinham nada a ganhar por me molestarem,  eles eram inteligentes o suficiente para perceber esse facto. Na realidade, minha presença era, em boa dose, benéfica para seus interesses. Tinha pano, colares, espelhos, colheres, copos, e outras bugigangas, as trocava com eles, e sempre que organizava uma pequena caçada atrás de elefantes e hipopótamos, a minha parte no consumo desses animais era muito pequena, a maior parte da carne  dava aos nativos.

Minha vida durante a minha estada na Estação Equador foi muito agradável. As pessoas eram duma disposição feliz e alegre, todos foram simpáticos e falantes. Sentavam-se por horas e ouviam atentamente os meus contos da Europa, e suas perguntas inteligentes provavam que eram dotados de profundo entendimento. Não há público mais atento em todo o mundo que um grupo de selvagens africanos, se  puder falar a sua língua e os fazer entender.

Quando me cansava de falar, passava a fazer-lhes perguntas sobre os seus modos, costumes e tradições. Como sempre ficava muito impressionado pela  sua crueldade, sempre fizera questão de expressar a minha repulsa, e até mesmo dizia-lhes  que um dia  lideraria um levante dos escravos. Minha audiência em tais ocasiões consistia principalmente de escravos, e esses pobres miseráveis sempre ficavam muito satisfeitos por ouvir minhas opiniões favoráveis a eles.

Meus argumentos,  pude ver muitas vezes, atraía fortemente os interesses dos próprios chefes, quando lhes perguntava: "Por que vocês matam essas pessoas? Vocês pensam que eles não têm nenhum sentimento, porque são escravos? Como  gostariam de ver seus próprios filhos levados para longe de vocês e vendidos como escravos, para satisfazer os desejos de canibalismos, ou de execução?". Alguns deles, na época, até disseram que não iriam mais realizar execuções. Estas execuções continuaram a acontecer, mas de forma secreta, e as notícias desses acontecimentos ficavam longe dos meus ouvidos até algum tempo depois, quando  ficava s saber através dos meus próprios homens. Embora  fosse incapaz de impedir a realização de tais cerimónias, com a força que  tinha à minha disposição dum único soldado Zanzibar.

 

ALGUNS COSTUMES BÁRBAROS.

Lembro-me de uma execução que aconteceu,e  os detalhes que fiquei a saber bem depois. Foi para celebrar a morte dum chefe que morrera afogado durante uma expedição comercial.

Tão logo a notícia de sua morte chegou à aldeia, vários dos seus escravos foram amarrados pelas mãos e pés, e presos no fundo de uma canoa. À noite, essa canoa foi rebocada para o meio do rio, buracos foram feitos na mesma, e foi deixada para afundar com sua carga humana.

Quando formos capazes de proibir essa terrível perda de vidas, que as crianças de hoje são obrigadas, constantemente, a testemunhar, sentimentos mais humanos poderão se desenvolver, e cercado por influências mais saudáveis - pelo menos longe das exposições abertas da crueldade - eles crescerão no meio de uma geração muito mais nobre.

Nativos que sofriam nas mãos dos traficantes de escravos, repetidamente, pediam-me para ajudá-los.

No Malinga, onde a carne humana fora-me ofertada para venda, os chefes reunidos votaram numa oferta para mim de várias presas de marfim se vivesse entre eles e os ajudasse a se defenderem dos Lufembes, e prepará-los a resistir às perseguições que sofriam das tribos vizinhas, que continuamente realizavam incursões em seus territórios, capturando seus povos.

Eles alegaram: "Nós vamos acabar morrendo de fome, pois não podemos mais fazer plantações, porque quando nossas mulheres vão para a lavoura elas são capturadas, mortas e comidas pelos argilosos Lufembes, que vivem, constantemente, rondando por perto e levam qualquer desgarrado que encontram". Um velho chefe, Isekiaka,  disse-me que 12 das suas mulheres haviam sido roubadas, uma a uma,  e várias de suas crianças.

Na verdade, a condição de vida das pessoas na região dos Malingas é tão miserável, que vários deles foram expulsos, pelos Lufembes, de suas plantações, e realmente compelidas a viverem no rio, em palafitas apoiadas sobre estacas. Nessas miseráveis habitações lançam suas redes, e quando o rio está cheio de peixes  subsistem quase  inteiramente do produto de suas pescas.

Isto deu origem a um curioso estado de coisas, pois, como os Lufembes cultivam apenas mandioca e produzem mais raízes do que consome a tribo, então ficam felizes em trocar esse produto pelo pescado capturado pelas suas vítimas. E assim, quando esse mercado é realizado, uma trégua armada é declarada, então os Lufembes e os Malingos se misturam e negociam, os seus produtos mantidos numa mão e uma faca de espera na outra. Assim, facilmente se imagina que a perseguição é incessante, as quais esses nativos sofrem, os torna cruéis e impiedosos.

Em todas as regiões do Malinga se tornaram tão brutalizados pela fome que comem os seus próprios mortos,  a aparência de qualquer uma das suas aldeias, sempre denota numa degradante miséria e fome. Tenho visto repetidas vezes, crianças pequenas comendo raízes de bananeira, tentando em vão obter algum tipo de alimento de sua seiva. O facto deles permanecerem vivos é um mistério. Qualquer coisa viva que eles são capazes de pegar é visto como alimento; vários tipos de moscas, lagartas, grilos são todos consumidos por essas pessoas.

Somente quem vive durante algum tempo na África Central, pode entender a imagem da vida, que resulta nas mentes dos selvagens pelas mais atrozes e desenfreadas crueldades.

Cercados desde a infância por cenas de derramamento de sangue e tortura, seus feriados e grandes cerimónias marcadas por massacres de escravos, a mais branda e mais sensível das naturezas torna-se brutalizada e insensível, e se isto acontece com o livre, qual deve ser o efeito sobre o escravo, arrancado de sua mãe quando ainda criança, talvez com a idade de dois anos, e ainda, em sua infância obrigada a sofrer privações. Se realmente esta criança participa do desafio do canibalismo e das cerimónias de execução, não se pode esperar que ele pudesse se apiedar com qualquer sofrimento.

As pessoas na parte inferior do alto Congo raramente praticam captura de escravos. É somente quando vamos ao distrito Bakute que temos contacto com isso. As grandes aldeias ao redor de Stanley Pool, - Chumbiri, Bolobo, Lukolela, Butunu, Ngombe, Busindi, Irebu, - Lago Mantumba, e o Rio Ubangi todos contam principalmente com as tribos Balolos para obterem seus escravos. Todas essas aldeias, excepto Stanley Pool fazem diariamente sacrifícios humanos, seja pela morte de algum chefe ou por algum outro motivo cerimonial.

Qualquer tipo de comércio realizado nesta parte da África só aumenta o derramamento de sangue, porque a ambição do nativo é ter o maior número possível de escravos ao seu redor, e quando ele vende uma presa de marfim ou qualquer outro artigo, dedica quase todas as bagatelas que obteve na compra de novos escravos. Assim,  estará cercado por muitas mulheres e guerreiros durante sua vida, e terá sua importância marcada na sua morte pela execução da metade do número de seu povo.

A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO

Frequentemente conversava com essas pessoas, e explicava-lhes a iniquidade da escravidão, mas eles argumentavam: "Nós trabalhamos duro demais em nossas expedições comerciais para obtermos esses escravos, por que deveríamos abandoná-los para que outros que não trabalham os tomem? Nós os compramos,  são nossos escravos,  temos o direito de fazer o que quiser com eles".

A cerimónia de execução, com sua brutalidade resultante, deveria ser, e pode ser extinta. O derramamento de sangue é ainda maior hoje, do que quando Stanley viu esse povo pela primeira vez em 1877; a razão disso, como já foi mencionada anteriormente, é que o contacto com os brancos tornou os nativos mais ricos, e permitiu-lhes obter mais escravos. As grandes potências do mundo civilizado estão agora a discutir o movimento abolicionista, e caso tais discussões resultem em alguma acção conjunta voltada para a supressão do comércio no interior, existem algumas características peculiares que podem ser transformadas em vantagens:

Primeira, e mais importante, este tráfico não possui complicação de qualquer tipo de fanatismo religioso. 

Segunda. Esse povo é desunido; cada aldeia de cinquenta ou sessenta casas é independente da sua vizinha e pequenas guerras familiares estão frequentemente a acontecer.

Terceira. Não há nada tão convincente para o selvagem Africano como a superioridade física. Agora, todos estes pontos são a favor do movimento anti-esclavagista. A ausência de fanatismo religioso, a condição de desunião entre os nativos e seu reconhecimento da superioridade física devem ser todos aproveitados, e sempre ter isso em mente quando do projecto dos planos para a supressão do tráfico de escravos e sua barbárie resultante.

Em minha opinião, levará alguns anos antes que o tráfico de escravos realizado pelos árabes venha ser combatido com êxito, mas não há nenhuma razão para atrasar o levante contra o comércio inter-tribal.

O Congo Free State deu um passo na direcção certa instalando próximo à Stanley Falls um acampamento com trincheiras, com o objectivo de formar uma barreira para manter os árabes, com seus bandidos de Manyema, a leste dessa posição.

Cada país no mundo deve apoiar o CFS a concretizar esse objectivo, pois isso representará o papel mais importante na história da África Central. Quando Stanley deixou Wadelai, os mahdistas (africanos islâmicos) já estavam por lá. Se essas hordas se juntarem com os de Stanley Falls isso exigirá esforços muito mais enérgicos, para salvar toda a Bacia do Congo de suas devastações.

Enquanto somos capazes de manter os árabes ao leste das Cataratas, não devemos perder tempo para iniciar a erradicação do derramamento de sangue existente ao oeste daquele ponto. É um trabalho enorme, mas é uma dívida que o mundo civilizado tem para com o escravo indefeso. Embora seja um selvagem,  é um ser humano. Deve ser sempre lembrado que a supressão da escravidão na África não significa apenas combater os grilhões dos membros do escravo; a substituição do trabalho forçado pelo pagamento não é seu único objectivo, mas também o alívio, da humanidade escravizada em todas essas regiões, duma vida de horror indescritível, de torturas que só o Africano selvagem pode inventar, e duma morte certa e violenta.

Desde Banana Point até Stanley Pool a escravidão realmente existe, mas com um carácter mais brando que, quando as operações realmente começarem, Stanley Pool deve ser o ponto de partida. Se meia dúzia de barcos rápidos forem colocados no rio em Stanley Pool, cada um armado com vinte soldados negros, treinados e comandados por dois ou três europeus que tenham comprovados por seus serviços passados que são capazes de lidar com a questão, e se tal força tiver o reconhecimento dos poderes civilizados e for autorizado a combater o mal, milhares de vidas humanas serão salvas.

Estes barcos estariam constantemente a mover-se pelo rio,  os que estão no comando começariam por fazer um estudo cuidadoso da política local. Teriam de convencer os nativos da sua determinação em impedir essas cerimónias diabólicas de derramamento de sangue. Os nativos devem ser advertidos de que as aldeias que, no futuro, sejam consideradas culpadas de realizarem tais cerimónias, serão muito severamente punidas.

Alguns dos chefes nativos com melhor predisposição teriam suas cabeças feitas para apoiarem o lado do homem branco. Espiões devem ser contratados em todos os distritos, de modo que um barco ao chegar a um porto imediatamente sua tripulação ouvirá se alguma execução esta prestes a ocorrer ou já ocorreu, e eu gostaria de sugerir que qualquer aldeia que continuasse com esses actos de crueldade, depois de ter sido legalmente advertida, deverá ser atacada, e um forte exemplo seria feito aos principais infractores. As punições logo teria um efeito muito salutar. Estas operações  recomendaria a se realizarem entre Stanley Pool e as cataratas. Postos de observações também devem ser estabelecidos em posições estratégicas para controlar os pontais dos rios usados pelos caçadores de escravos.

Cada ponto deve ser suprido com um barco, igual ao que recomendei para o baixo rio. Outras estações devem ser estabelecidas no centro do distrito que praticar o raide escravo. Escravos encontrados nos mercados poderão ser resgatados e colocados num assentamento, onde  podem ser treinados como soldados ou aprender algum ofício útil; Tenho comprado, sempre que possível, o resgate de escravos. a conclusão da compra, sempre tive a precaução de colocar nas mãos do homem libertado uma declaração afirmando sua liberdade resgatada por mim, e que a expedição que representei fará um determinado pagamento mensal, enquanto ele permanecer a seu serviço.


EFEITO DA LIBERTAÇÃO.

Foi curioso observar os diferentes efeitos que o anúncio da redenção teve nos escravos libertados de forma tão inesperada. Como regra, o homem perplexo fazia todos os tipos de perguntas a cada um dos homens da tripulação do meu barco, qual  seria o significado da cerimónia! Qual seria o seu destino? Seria  trocado por marfim? Ou seria comido? Levei algum tempo e paciência para explicar! Passado algum tempo o susto passou da primeira surpresa. A importância do papel que e tinha foi colocado na sua mão.

Outros, mais inteligentes, imediatamente compreenderam a sorte que tiveram;  era estranho ver a mudança surpreendente na expressão de seus rostos, num momento antes nada indicava, a não ser uma submissão sem resistência ao seu destino miserável,  seus corpos inertes e cansados. De repente parecia ao mesmo tempo tornarem-se erectos e vigorosos, quando libertados daqueles degradantes grilhões.

Depois de comprarmos todos os escravos que estiverem expostos para venda, uma advertência foi feita, Alertou-se que qualquer tentativa de compra de seres humanos para escravidão seria considerada um sinal de guerra,  que os compradores seriam severamente punidos.

O mais importante do movimento é convencer os escravos na nossa seriedade e sinceridade. Sinto-me confiante  que  as operações executadas da maneira como sugerimos, teríamos mais resultados satisfatórios.

A razão para o facto das aldeias nativas serem desunidas é que, raramente aparece um chefe suficientemente forte para liderar uma união. Esta fraqueza deve ser aproveitada, incumbindo competentes homens brancos para liderá-los, e através da sua influência pessoal, unir as tribos sob sua liderança.

Mais cedo ou mais tarde teremos que combater os árabes em Stanley Falls. Actualmente,  permanecem por lá  não porque os homens brancos não lhes permitam descer o rio, mas porque estão no centro dum campo rico, sabem que, descendo o rio devem confiar inteiramente nas suas canoas, as estradas no interior são poucas e distantes entre si, devido à natureza pantanosa do terreno. Também teriam pela frente os populosos e belicosos distritos de Upoto, Mobeka e Bangala para lutar contra, o que não seria tão fácil de superar como são as pequenas aldeias espalhadas ao redor de Stanley Falls, que no momento são frequentemente perseguidas.

Todos os nativos do Alto Congo, até os actuais limites sob a influência dos árabes, devem ser controlados tanto quanto possível por europeus. Devem permanecer alinhados com os europeus, de modo que quando chegar o momento dos árabes decidirem avançar rumo ao Oeste, encontrarão nas suas fronteiras uma barreira de nativos bem armados e decididos. O comércio de escravos de hoje é quase totalmente confinado à África. Os escravos são capturados e eliminados no próprio continente,  o número daqueles que são enviados para a Turquia e outras partes é realmente pequeno em comparação com o enorme tráfego exercido no interior. Nós temos a autoridade de Stanley e Livingstone e outros exploradores a cuidar da iniquidade existente na porção Oriental da África Equatorial.

Na Índia temos um exemplo daquilo que a determinação e resolução podem realizar, como as cerimónias desumanas do sati, carro de Juggernaut, o infanticídio, e a sociedade secreta dos Bandidos foram todas reprimidas pelo governo britânico. As oportunidades para alcançar o centro da África estão anualmente a melhorar.

Desde que Stanley expôs pela primeira vez ao mundo a história manchada de sangue do Continente Negro, rápidos avanços foram feitos na abertura daquele país. O trabalho para o bem estar da África, tão determinadamente perseguido por Livingstone, foi agora mais nobremente realizado por Stanley, e o rápido progresso que está actualmente acontecendo é inteiramente devido aos esforços de Stanley. Um grande obstáculo sempre existiu entre o mundo exterior e a África Central, no trecho de águas não navegáveis entre Matadi e Stanley Pool. A ferrovia que está a ser construída agora vai superar esta dificuldade.

E, J. Glave

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